Pay to Play e Jogos Digitais

Nasci nos anos 80, época em que os jogos digitais começaram a chegar à vida de crianças de classe média e alta. A digitalização tecnológica possibilitou que o processamento computacional substituísse parcialmente brincadeiras de rua pelos quartos com televisão. Inclusive alguns dos primeiros jogos do antigo Atari relembravam essas brincadeiras: esconde-esconde, polícia e ladrão, bang-bang, luta, além dos mais amados esportes, simulados virtualmente com qualidade precária. Naquela época era uma revolução, que mudou a forma de interação de crianças entre si e com as máquinas. Elas passavam horas e horas com aquele que era, para muitas, o seu melhor amigo, o videogame. O horário, a variedade e a instantaneidade do lazer se expandiram, em paralelo ao isolamento social.

Aquela transformação pela qual passamos, ao vivenciar a transformação do analógico ao digital impactou nos adultos que nos tornamos. Sempre dependentes do mundo digital, mas de forma nem tão confortável quanto os mais jovens de hoje. Tampouco somos tão adaptativos a mudanças tecnológicas extremamente rápidas, já que o nosso processo de adaptação e uso de cada inovação durante nosso crescimento durou muito mais tempo. O tema é amplo e cheio de debates interessantes, mas vou me deter aqui à questão dos jogos digitais – ou seja, dos videogames – e ao surgimento do ingrato sistema on-line Pay to Play.

Essas mesmas crianças que cresceram com jogos digitais não os abandonaram depois de adultos. Muitos ainda se divertem enormemente com videogames e jogos computacionais. Afinal, não é de hoje que adultos passam horas e horas em frente a um jogo. Basta lembrar das intermináveis partidas de canastra de antigamente e o vício em jogos mais perigosos (com altas apostas) que muitos experimentaram, inclusive acabando com a poupança de famílias (caso do meu avô materno, por exemplo). Ok, sempre fomos viciados em jogos, até quando adultos. Mas o que mudou hoje?

Hoje jogamos muito mais jogos digitais que analógicos. Como mencionado acima, eles permitem uma variedade de opções antes inimaginável; instantaneidade para jogarmos quando e onde quisermos, principalmente com o advento do smartphone; e autonomia, já que, na maioria das vezes, não necessitamos da presença de outras pessoas para jogar. Além disso, jogos digitais se transformaram profundamente nos últimos anos. Eles incrementaram a possibilidade de interação por meio da internet, da monetização e de outros instrumentos competitivos que incentivam a dependência e o isolamento do mundo real em prol do virtual. A maior complexidade foi integrada a uma agenda capitalista de obtenção de lucro contínuo em projeção global. Isto produziu recursos para investimentos em jogos digitais repletos de inteligência artificial e algoritmos complexos, que passaram, inclusive, a serem chamados de simulação e produzirem mais incentivos para a vivência no mundo virtual.

Pela minha paixão prévia, e promessa pessoal de que iria passar a me divertir em momentos de folga, comecei a jogar um game on-line para sistemas Android e iOS, chamado Saint Seiya Awakening (SSA). Trata-se de um novo jogo baseado no mangá e anime japonês que marcou a minha infância, os Cavaleiros do Zodíaco. A tentação com os Cavaleiros também é simbólica posto que o mangá tem uma filosofia e ética de fundo, bem complexa e interessante para quem quer ir além da brincadeira. Além disso, como qualquer cientista social, não me contive à diversão e passei a analisar os mecanismos mais amplos envolvidos no jogo. O jogo é genial e remete ao RPG de cartas, Magic (que também jogava na adolescência), pela estrutura do jogo (em turnos) e sistema de atributos de personagens e equipes.

Mas o jogo não narra ou simula apenas a história interessante escrita no mangá. O game foi, infelizmente (ou felizmente, até agora não sei), tomado pela nova estrutura dos jogos contemporâneos.  Não é suficiente comprar o jogo e tentar zerá-lo no seu tempo. Pelo contrário, sua tamanha mobilidade e flexibilidade funcionam para que nunca cheguemos ao fim. Não disputamos com um processador previamente programado, mas com máquinas inteligentes e, sobretudo, outras dezenas de milhares de seres humanos, que na minha infância nunca caberiam na minha sala de casa. A estrutura revolucionária desses novos jogos, exemplificada no SSA, funda-se ao meu ver em três elementos que complexificam o seu universo.

Primeiro, o jogo não tem apenas um jogo ou uma história. Há uma multiplicidade de subjogos internos com dinâmicas variadas, feitos para a interação com a máquina (PvE; Player vs Environment, em inglês) ou outras pessoas conectadas no servidor on-line (PvP; Player vs Player, em inglês). A diversidade poderia significar mais autonomia e independência a não ser pelo fato de que todos esses subjogos dão recompensas que afetam o progresso no jogo como um todo. Ou seja, há grandes incentivos para você não perder nenhuma oportunidade caso queira avançar no jogo. Para fazer o mínimo de todos os jogos, gastam-se cerca de 2h por dia(!). A vitória é sempre relativa, pois cada subjogo é praticamente infinito e se conecta sempre a um jogo maior também interminável. E menos mal que não é um jogo em tempo real, tal qual o Supremacy 1914, em que desconectar ou sair da frente do jogo pode custar a vida virtual e todo o investimento já dispendido no game. Competidores natos, enlouquecem (e eu que o diga!).

O segundo elemento de complexidade do jogo digital atual é a rede social. O jogo on-line não é um jogo frio, isolado virtualmente. Na realidade, há muitas vezes, como SSA, uma rede social interna ao game, em que se valoriza a divulgação do sucesso dos melhores, como elemento de competitividade e também colaboração para possibilidade de sucesso. Essa plataforma, uma vez integrada e ampliada a Whatsapp, Facebook e Youtube, faz com que a sua vida não consiga se desvincular do game, mesmo off-line

O terceiro e mais importante elemento dos jogos digitais contemporâneos carrega o diferencial mais estrutural, a saber: a monetização como forma de avançar no jogo. O jogo é apenas “pseudo-gratuito”. É repleto de compras no aplicativo que possibilitam, de um lado, jogadores ascenderem a níveis extraordinários no jogo e, do outro, garantem aos produtores condições de criarem conteúdo (recursos e eventos) que só serão acessíveis com (grandes) dispêndios. Alguns games, inclusive, só vão até certo estágio se você não pagar. Até aí tudo bem, pois acostumamos a ter de comprar cartuchos, CDs ou DVDs para jogar. Entretanto, outros jogos liberam todo conteúdo de forma gratuita (ou com anúncios), mas você só chegará à vitória (sempre relativa) se dispender um dos dois elementos preciosos de nossas vidas: a vida ou muito dinheiro. Daí surgem duas categorias de jogadores, bem difundidas nos dias atuais (para quem se importa com esse assunto).

O Free to Play (F2P) é o jogador que não paga para jogar. Entretanto, em alguns jogos de sucesso como o SSA isso só é possível se você optar trocar a sua vida pelo jogo. Você joga muito, quase infinitamente para obter recompensas que se equiparem ao jogador que paga muito para obter grandes recompensas. Certamente as conquistas nunca serão tão abundantes, mas a dedicação obstinada possibilita obter recursos consideráveis que resultam em boas possibilidades de realmente ascender no jogo. Passar o dia na frente da tela, transformar-se em um nerd profissional (o que acontecem com muitos jovens de hoje) não abona a pessoa de qualquer lógica comercial. Muitos jogados F2P reproduzem o monetarismo criando canais no YouTube super acessados para ensinar caminhos para a ascensão no jogo e, de quebra, divulgar o game para a comunidade, incentivando a arrecadação própria e a da produtora do software.

No outro extremo estão os jogadores Pay to Win (P2W) invocados. Vi em uma comunidade do SSA no Facebook alguns jogadores que admitem gastar entre 300 e 400 dólares por mês para avançar no jogo, bem acima de qualquer valor de um jogo lançamento para console. Ou seja, não está pagando para jogar, mas para vencer. Esse valor é praticamente a metade da renda mensal per capita média do brasileiro; gasta em um jogo (!). Das duas uma, ou você é milionário ou não sobrará dinheiro para outras necessidades ou preferências. Não é à toa que esses jogadores são ressentidamente criticados pelos F2P, que nunca conseguirão acompanhar a sua capacidade monetária. Nem mesmo tornando-se escravo do jogo.

Ok, embora pareça certo tabu romper esta divisão maniqueísta, minha opinião é que a maioria dos usuários de jogos digitais de hoje vive em um dilema no meio dos extremos. Somos, em geral, Pay to Play (P2P). Gastamos o que for possível para conseguir jogar sem precisar dedicar a vida nem estourar a conta bancária. Seja o valor do jogo ou o valor dos recursos mínimos para poder jogar. Nesse último caso, como no SSA, escolhemos vez que outra pagar o mínimo para se divertir tranquilamente, sem ter de transformar o jogo na prioridade de sua vida.

Legal, mas não é tão simples assim. O problema é que, nessa condição pessoal e dada a estrutura dos jogos atuais, nunca mais teremos o prazer da conquista de vencer e encerrar o jogo do nosso jeito. Sempre estaremos relativamente atrás dos mais dedicados ou mais abonados, e nunca teremos um fim médio que nos garantam satisfação, mas frustração. O grande desafio dos jogadores P2P de hoje é que, ao contrário de antigamente, não é o acesso ao jogo que necessita de recursos de tempo ou dinheiro, mas o sucesso e a conquista momentânea. Atualmente, esses jogadores possivelmente não terão atributos definidores para serem realmente competitivos, apenas se divertirão com o jogo em escala intermediária. Serão potências intermediárias sem armas estratégicas e deverão se contentar com isso.

Para zerar o jogo não basta mais apenas ser P2P (nas quantias equivalentes à antiga compra do cartucho), mas F2P ou P2W. Não posso simplesmente adquirir o jogo e usar de minha estratégia e capacidade para vencer, terei de dispender todo o tempo ou dinheiro que tiver. Talvez seja ao mesmo tempo um reflexo e causa da nossa sociedade contemporânea. Queremos o infinito, o céu e não nos contentamos com limites; com começo, meio e fim. Divulgamos o sucesso e não o fracasso. O fim é sempre passageiro e efêmero, estágio de novas conquistas.

Mas não esqueçamos, tudo tem uma morte, um fim. Todos inevitavelmente experimentaremos vários fins em nossas vidas. Minha solução agora é comprar um emulador de consoles antigos e voltar às origens. Ou simplesmente, desligar o jogo e ler um livro. Certamente, com minhas capacidades e limites intelectuais e de disponibilidade, conseguirei chegar, a meu tempo, à última página.

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